O que aprendi com o Santo Daime

Caledoscópio Ayahusca pronta
O texto a seguir é fruto de diversas reflexões que tive no meu processo de aprimoramento interno e que eu tive o trabalho de digitar para encaminhar a uma pessoa muito querida. Esses aprendizados eu não considero como verdades absolutas, apenas como alguns lampejos que eu já tive da verdade. Estou apenas engatinhando nos trabalhos espirituais com Santo Daime, mas é desses trabalhos que retiro muito do que aprendo, principalmente na Fraternidade Rosa da Vida.
 
Por isso, com amor e carinho, eu compartilho com vocês como meramente um depoimento sem embasamento bibliográfico, mas desejando paz e bem a todos.
 
Posso dizer que é difícil eu me identificar com a maioria das coisas. Quando digo me identificar estou me referindo ao tipo de processo mental em que a pessoa se conecta a algo e toma aquilo para si como sua própria realidade em essência. Isso não me impede de compreender, de modo algum. Isso me impede de ser algo que eu não sou. Eu entendo os revoltados, entendo os rebeldes, entendo suas causas e seu sofrimento, porém eu não sofro junto com eles, pois não sou um deles.
 
Essa ausência de identificação não é absoluta, lógico. Mas é algo que me deixa bastante desprendido de muitas coisas. Por exemplo, nunca participei de greve. Nunca protestei pelo meu salário. Não xingo o(a) Presidente da República nem parlamentar algum pelos seus atos de corrupção. Eu entendo o que leva cada um deles a agir como agem, assim como entendo a revolta do povo. Mas não me corrompo, nem me revolto, ou seja, não concordo com nenhum deles. Fico na minha, pois não sou corrupto, nem revoltado. Eu sou eu.
 
Isso não significa que eu ache justo o povo ser governado por políticos corruptos ou que eu ache bonita a avalanche de mentiras que está sendo desmascarada dia após dia. Tampouco significa que eu ache que não se deva fazer nada. Então o que isso tudo significa?
 
Primeiramente, eu não tenho apego a nada disso, pois sei que essa vida é passageira. Não é que eu não me importe. É que, simplesmente, isso não me faz sofrer. Acho, sim, que algo deve ser feito. Mas o que deve ser feito as pessoas não estão fazendo. O que elas precisam fazer é Ser. Precisam Ser incorruptíveis, mudando seus valores, pensamentos, sentimentos e atitudes. Precisam Ser pacíficas. Precisam Ser muita coisa. Se todos forem pessoas de bem, obviamente essas pessoas de bem estarão em todos os lugares: na vizinhança, na igreja, no trabalho, no trânsito e, inclusive, no poder político.
 
Ou seja, não preciso me revoltar nem me corromper. Preciso apenas Ser. Ser o que? Ser diferente.
 
Na meditação, você ouve o canto dos pássaros, ouve uma cadeira se arrastando, ouve conversas de pessoas, objetos caindo, coisas quebrando. Você se torna ciente de tudo, mas não se envolve com nada. Você enxerga tudo, mas não se prende a nada. Você não é o canto dos pássaros, tampouco a cadeira que se arrasta, nem mesmo o assunto daquelas pessoas conversadeiras. Você é você, nota tudo, mas permanece no seu lugarzinho em que medita silenciosamente.
 
Assim é que eu ouço uma crítica. Assim como eu aprendo com o canto dos pássaros, aprendo com a crítica. Mas não preciso me prender a ela, pois eu sei que dentro de mim há muito mais do que uma crítica. Se dentro de mim há coisas que nem eu próprio conheço, como é que uma pessoa, que me conhece menos que eu mesmo, poderia ter a capacidade de resumir-me em uma sucinta crítica? Somos Seres repletos de universos dentro de nós, por isso devemos ter a humildade de sempre lembrar que sabemos pouco sobre nós mesmos e menos ainda sobre os outros.
 
Cada um de nós possui uma constituição psicológica singular, arquitetada por um modo de educação constituído pelo somatório: (a) do conhecimento; (b) dos modos passados pelos pais, por meio de ensinamentos, exemplos e valores (construtivos e destrutivos); e (c) da própria carga interna de cada Ser.
 
Então, dependendo da combinação de todos esses fatores o que me parece educado, pode não parecer para você. O que me parece rude pode não parecer para você. Meu jeito de agir pode parecer bom para mim, mas não parecer bom para você. E vice-versa e assim sucessivamente. O que estou querendo dizer com isso?
 
Cada Ser, dentro da singularidade dos seus conhecimentos, conjugados com a criação dada por seus pais, conjugados com a sua própria carga interna, forma um conjunto complexo cheio de compreensões individuais sobre como as coisas são e sobre como as coisas deveriam ser.
 
Primeiramente, a visão do que as coisas são é subjetiva, pois cada Ser interpreta a realidade. A interpretação muitas vezes é tendenciosa. E a tendência da interpretação depende do estado de espírito do Ser ou da conveniência dele, pois, muitas vezes queremos enxergar as coisas apenas de uma determinada maneira. Esse “querer” influencia a interpretação, evidentemente, e afasta a compreensão da realidade como verdadeiramente é. O estado de espírito também turva o discernimento, pois uma mente agitada ou um coração aflito carregam cargas como medo e angústias, que também tornam a interpretação tendenciosa.
 
A melhor interpretação possível é alcançada com um estado de espírito elevado, com a mente e o coração firmados em Deus, no silêncio, na calma e na serenidade da Santa Luz Divina que habita cada Ser, independente de qual seja a sua singularidade. E, se alguma interpretação tendenciosa pode ser considerada positiva, certamente essa interpretação é aquela que se deixa influenciar pelo amor, pela paz e pela vontade de se harmonizar.
 
Nós precisamos lapidar nossas mentes e nossos corações para galgar graduações mais elevadas de leitura da verdade pura. Isso se dá diminuindo cada vez mais o subjetivismo na interpretação das diversas situações da vida que se apresentam até nós e nos esforçando para observar as coisas sem emissão de juízo de valor.
 
O juízo de valor é, mormente, uma reação instantânea da mente, sem observação, sem silêncio, sem serenidade, e, muitas vezes, está condicionado e contaminado pelos nossos vícios (grandes e pequenos). Uma pessoa incapaz de reconhecer-se envolta em vícios se mantém iludida, pois julga, movida pelo impulso de valores que, muitas vezes, não são puros. Então, esse processo de lapidação nos gradua a abrir mão da reação e a assumir a postura da observação sem envolvimento.
 
Na medida em que o juízo de valor sobre as coisas diminuir, melhor se compreende tudo o que existe no mundo e nas pessoas. Compreender não é concordar, não é apoiar ou ser negligente. Compreender é entender, sem acusar, sem guerrear, sem culpar, mas também sem ser passivo. Compreender também é saber se posicionar com sabedoria, de maneira pacífica e determinada, mas com fundamento em uma análise do que é melhor para si próprio.
 
Uso os termos interpretação e interpretação subjetiva porque parto de uma premissa fundamental sobre a verdade: por mais que vejamos partes da verdade, não podemos julgar que conhecemos a plenitude da verdade. Isso porque, obviamente, vivemos em condições cheias de limitações perceptivas. Isso se constata da ciência, que já nos provou a existência de diversas coisas que não percebemos com nossos sentidos, tais como a matéria escura e frequências de cor e som.
Mas a interpretação ainda é um mecanismo inerente aos nossos Seres quando tentam entrar em contato com a verdade. A partir da observação, tentamos formular o que é que estamos percebendo. Um exemplo disso já foi experimentado por todos nós, quando entramos em contato com algum artefato sem saber qual é sua funcionalidade. Olhamos, tocamos e pensamos “para quê serve?”. E aí a mente tenta formular o que é.
 
Quanto maior for a observação, menor será a necessidade de interpretação. Quanto menor a interpretação, menor a formulação mental na tentativa de entendimento. Quanto menor a formulação mental, mais percebemos as coisas como realmente são, ou seja, maior é o discernimento e maior é o alcance da verdade pura e simples, direta, sem véus ilusórios, sem influências.
 
Agora, a respeito de como as coisas devem ser, também existe subjetividade. Mas esta subjetividade está mais associada às crenças de cada ser e aos valores contidos em cada um. É muito difícil encontrar valores que sejam absolutos entre todos os Seres. Tanto que nem mesmo a crença em um Deus Criador é algo que todos os Seres compartilham unanimemente.
 
O fato é que cada um sabe o que é melhor para si e não deve impor nada a ninguém. Porém, para que convivamos em harmonia e em coletividade, todos devemos fazer concessões. Devemos sempre abrir mão um pouco de algo nosso que possa invadir o espaço do outro e é justamente por isso que existem regras mínimas de convívio, até mesmo nas tribos mais selvagens.
 
Portanto, para a boa convivência, primeiramente precisamos ser Seres mais pacíficos e serenos, de modo que possamos interpretar a realidade de maneira menos tendenciosa e mais realista, com mais discernimento. Com essa interpretação mais límpida, teremos um vislumbre mais apurado de como as coisas devem ser. Se assim não for, estaremos sempre dentro de enganos interpretativos, enxergando a realidade alterada pelo nosso estado de espírito desarmonizado e opinando sobre como as coisas devem ser dentro dessas influências que não são construtivas em si mesmas.
 
Em se tratando de juízo de valor sobre ações e comportamentos, podemos dizer que o que é bom para alguém pode não ser bom para outrem. Isso é algo evidente, inclusive em razão da singularidade. Todavia, um juízo de valor é algo subjetivo (não é unanimidade), portanto depende, primeiramente, do valor que alguém dá. Além disso, depende das circunstâncias, do contexto e das condições em que esse alguém dá a sua interpretação da realidade, e essas são tendências que afetam a interpretação.
 
Logo, como é que o juízo de valor de uma pessoa sobre a ação ou um comportamento de outra pessoa pode revelar a verdade absoluta, pura e simples, sem influências interpretativas?
 
Poderia, no máximo, revelar uma visão particularizada de uma pessoa sobre a outra, mas as verdades só podem ser percebidas com uma observação desprovida de juízo de valor. Porque? Porque juízo de valor é julgamento. Julgamento não é entendimento, é opinião. Opinião cada um tem a sua e só serve para cada um escolher o que é melhor para si próprio, não para todos, unanimemente.
 
Sendo assim, qualquer opinião é válida para a pessoa definir o que é bom ou não para ela própria, não para mim, não para todos. Depende da interpretação da pessoa e do que ela quer para si própria. É o entendimento de que eu sou amoroso o suficiente (ou não), sou atencioso o suficiente (ou não), etc., “para a pessoa”. Contudo, uma opinião jamais servirá para dizer uma verdade unânime sobre o que eu sou, sobre do que eu sou feito, sobre minha busca e meu caminho.
 
Existe uma gama gigantesca de singularidades, constituições psíquicas diferentes com as quais nós podemos nos afinar mais ou nos afinar menos. Eu não posso ter a expectativa de que todas as pessoas sejam afinadas com meu Ser ou com a minha singularidade, mas eu posso tentar me relacionar com qualquer uma delas, respeitando nossas diferenças.
 
Leandro Araújo, em 21/6/2016